terça-feira, 22 de junho de 2021

Evangelização

Meu pai foi um plantador de igrejas.
Antes disso, foi um desbravador. Literalmente.
Aos fins de semana, ele saia com sua moto para andar pelos matos e fazendas do interior do Rio Grande do Sul. A mala dele era uma bolsa de couro marrom que ele enchia de folhetos com trechos bíblicos e a pendurava à tiracolo. Lembro-me que um dos trabalhos que eu e meus irmãos tínhamos era carimbar os folhetos que ele levaria (nós tínhamos entre 1 e 5 anos e tudo era diversão!). No carimbo havia o nome e o endereço da congregação na cidade.
Aos poucos, as pessoas foram chegando para congregar conosco. Mas havia muita gente que vivia embrenhada pelos “peraus” da serra gaúcha que nunca tinha ouvido falar de Jesus, e estes eram o alvo de meu pai.
Pouco depois da moto, ele conseguiu uma kombi e a equipou com colchão, fogão, suprimentos, a moto e uma bicicleta. Assim, ele podia ficar mais dias e noites lá fora, procurando pelas pessoas onde elas estivessem. Se o local não podia ser acessado de kombi, então ele ia de moto ou de bicicleta, mas ia. Ao encontrar com as pessoas, ele lhes entregava um folheto, falava de Jesus e orava com elas. Nem todos o recebiam bem, e ele tem muitas histórias para contar sobre isso.
Aos poucos a congregação foi crescendo, o nome de Jesus foi sendo conhecido na cidadezinha que hoje nada mais tem de “inha”.
Eram tempos diferentes do mundo globalizado em que vivemos hoje. Telefone era artigo de luxo e internet era algo com o que nem sonhávamos. Por isso, a atitude dele de se embrenhar pelas matas para fazer o nome de Jesus conhecido é um ato memorável para mim.
Infelizmente, nossa atualidade é diversa daqueles tempos, pois, agora, quem precisa ser evangelizado são os próprios evangélicos. Se no passado o nome de Jesus era desconhecido, hoje ele é amplamente repetido e até desrespeitado. O nome de Jesus tornou-se algo tão comum que perdeu o encanto.
O ato de evangelizar precisa ir muito além de espalhar o nome de Jesus, precisa ser uma prática de vida com uma intimidade com Deus tão grande que as palavras sejam desnecessárias. Ouvimos muitas palavras e sermões de ‘homens de Deus’ e de ‘profetas’, mas vemos pouca diferença na vida das pessoas.
O Evangelho precisa ser vivido antes de ser falado, senão, vira discurso vazio e sem sentido. A encarnação do Evangelho é Cristo. Portanto, evangelizar é viver como Cristo viveu, é agir como Ele agiu, é perdoar como Ele perdoou, é doar-se como Ele se doou. Qualquer outro estilo de vida que não imite a Cristo, não é uma vida de evangelização.
Meu reconhecimento e apreciação por todos aqueles que, como o meu pai, empenharam-se por tornar o nome de Jesus conhecido, e minha oração por arrependimento e conversão daqueles que apenas falam, mas não vivem o Evangelho de Cristo.

Santidade X Perfeição


O que vem à sua mente quando você ouve as palavras 'santo', 'santa', 'santidade'?
A palavra ‘Santidade’ é geralmente usada em categorias dentro do mercado religioso, ou para remeter a uma vida de reclusão em monastério, para nos lembrar de pessoas que se retiraram da sociedade para viverem reclusas e, assim, alcançarem a santidade.
Algumas respostas bem comuns à esta pergunta abrangem:
1)      Santidade tem a ver com a perfeição moral; santo é o indivíduo perfeito, aquele que não peca.
2)      Santidade é a busca da perfeição moral, é o processo para se chegar na perfeição moral.
3)      Santidade é, portanto, impossível de ser alcançada, já que ninguém vai chegar na perfeição moral.
4)      Santidade é para pessoas muuuuito espirituais. Pra ser santo não dá pra estar no chão da vida.
Biblicamente, porém, podemos dizer que a santidade é o que nos sustenta, de tal maneira que o peso da existência não nos esmague.
A santidade é um tipo de coração diante de Deus.
Santo não é aquele que é perfeito moralmente, não é o cara da impecabilidade.
O rei Davi era um pecador consciente. Ele comete o pecado do adultério dentro da relação de intimidade com Deus. Quando o profeta o confronta, ele se identifica como culpado. Ele não se justifica, não terceiriza seu pecado. Isso só é possível quando não perdemos nossa intimidade com Deus.
“Deus tem mais prazer na desobediência íntegra do que na obediência hipócrita.”
Deus não sai da cena quando a gente peca. Estamos na presença de Deus o tempo todo, inclusive quando pecamos. Por isso que a santidade tem a ver com um coração que não tem reservas com Deus.
“Os olhos do Senhor passeiam pela terra procurando um coração inteiramente dele.” 1 Crônicas 16:9
A vida dos humanos é cheia de tentações, cada um carrega consigo seus próprios limites. Quando queremos ser tão santos a ponto de não nos sentirmos mais tentados pelo que é comum aos humanos, estamos nos descaracterizando de nossa humanidade, nos desconfigurando do estilo humano de ser. Isso não é ser santo.
Santidade é viver com tudo o que você é na presença de Deus. Sem medo, sem vergonha, sem falsidade, sem constrangimento, sem irresponsabilidade, com todas as minhas intenções, com meu coração inteiro diante de Deus. Estando meu coração inteiro, haverá nele luz e sombras.
Quando Deus chama Abraão e diz: anda em minha presença e sê perfeito, a gente logo pensa: anda na minha presença e não peque! Mas o que Deus tá dizendo é: “Anda em minha presença e sê inteiro, seja íntegro na minha presença.”
Entender a santidade como perfeição, ou como a busca por ela, vai criar um problema do ponto de vista da saúde emocional, pois vai exigir do ser humano algo que não é possível de se alcançar, e isso vai gerar culpa, vai gerar frustração, julgamento. Nesta perspectiva de perfeição, quando o indivíduo sofre uma queda, quando ele comete um erro, ele é linchado, é desqualificado, é julgado e condenado.
As instituições religiosas, os dogmas, os credos religiosos exigem essa santidade de perfectibilidade moral. Mas isso não é compatível com o ser humano.
As pessoas que buscam esta santidade baseada na perfeição são chamadas por Jesus de hipócritas, de sepulcros caiados. São os fariseus que buscam a aparência de perfeição moral; são eles que não têm pecados escandalosas, que mantêm a aparência de perfeição moral. No entanto, isso não é compatível com a condição humana e nem com a Bíblia.
O apóstolo Paulo NÃO disse: “Deus sabe que eu era pó, mas depois que encontrei com Jesus na estrada de Damasco eu deixei de ser pó!” NÃO! Ele disse: “sou pó, Deus sabe que sou pó.  O bem que quero fazer, não faço; mas o mal que não quero, esse eu faço. Miserável homem que sou. Mas graças a Deus que nenhuma condenação pesa sobre mim por causa de Cristo Jesus.” Esse herói da fé no Novo Testamento foi um homem atormentado, agoniado, ciente de sua posição diante de Deus.
As organizações religiosas que vivem com esse conceito de santidade como perfectibilidade moral não conseguem lidar com pecadores, com seres humanos; eles lidam apenas com fariseus hipócritas, e quando flagram alguém em pecado, tratam logo de julgar, condenar, acusar de ter vida dupla. Isso é doentio.
Paulo disse que Jesus veio ao mundo para salvar os pecadores dos quais ele era o principal, e isso não é uma linguagem retórica. Ele pensa isso de si mesmo e, na verdade, é o que deveríamos pensar de nós mesmos.
Esse conceito de santidade como perfeição moral faz a gente idealizar as pessoas, nos faz pensar do outro mais do que se deveria pensar. Deveríamos saber que o irmão que caiu está na luta do dia a dia igual eu estou. Quando eu deixo de idealizar o outro e entendo que somos feitos do mesmo pó, então sou capaz ajudá-lo a levantar-se quando o vir caído, ao invés de condená-lo. É um conceito de humildade alheia – húmus = terra, pó. Assim consigo olhar para o outro e ver o mesmo pó do qual também sou formado. Agir assim traz saúde emocional e relacional.
Gênesis 18:27-28 apresenta um conceito de santidade como atrevimento.  Abraão diz a Deus: “Eu só pó e cinza, mas me atrevo a falar contigo”. O homem santo convive com a consciência de que é pó, mas, por causa da graça, do amor e do acolhimento de Deus a ele como humano, ele pode dizer: sei que sou pó, mas me atrevo a falar contigo, eu me atrevo a ser mais do que pó porque eu fui criado para ser mais do que isso.
A pessoa que usa essa expressão: “Deus sabe que sou pó” como justificativa para continuar vivendo irresponsavelmente, não está falando a verdade toda. Deus sabe que eu sou pó, mas também sabe que eu recebi o fôlego da vida, Deus sabe que fui criado à imagem e semelhança dele, Deus sabe que sobre mim repousa o Espírito Santo, Deus sabe um monte de outras coisas sobre mim que podem me fazer parar com essa desculpa para viver de modo vulgar, irresponsável, infantil, leviano e desonesto.
A santidade me faz viver essa ambiguidade: saber que sou pó, mas não quero ser pó, então me atrevo a buscar a Deus para transcender minha condição de apenas pó, pois sei que não sou só pó.
A condição humana e as estruturas religiosas não são compatíveis com o conceito de santidade atrelado à noção de perfectibilidade moral. É seguindo este conceito que a religiosidade se apega e justifica as maiores crueldades sobre os fiéis; ela manipula a culpa dizendo: você não é o que você deveria ser, por isso Deus está irado com você, a mão de Deus vai pesar sobre sua vida até fazer de você uma pessoa santa.
Ora, nós não fazemos isso com nossos filhos! Por que cremos que Deus faz isso com a gente? Será que somos pais mais amorosos para nossos filhos do que Deus é para conosco?
Paulo nos ensina em Filipenses 3 dizendo (v.12) “não julgo ter alcançado a perfeição, mas me esqueço do que ficou pra trás e sigo para o futuro”. No entanto, no verso 15 ele escreve: “nós que somos perfeitos”. Como assim? No v. 12 ele não alcançou ainda, mas no 15 ele já é perfeito? No verso 16 ele esclarece: “prossigamos na medida daquilo que já alcançamos”.  Esse é o conceito de santidade: a integridade.
Eu sei que não cheguei lá – na perfeição moral - mas sei que já fui mudado. Lutero escreveu: “Eu sei que não sou o que devo ser; ainda não sou o que serei; mas, pela graça de Deus, sei que não sou mais o que era”.
Cada um de nós precisa ser íntegro com aquilo que já conquistou. Não tem outro lugar para começar a ser santo, senão o lugar da integridade; não como perfeição, mas como autenticidade, honestidade diante de Deus, inteireza de coração.
Outro conceito de santidade é o de santidade como quebrantamento: “um coração quebrantado e contrito, Deus não despreza”. (Salmo 51:17)
É preciso lembrar que quando o fariseu orava assim: “eu não sou como os outros, eu jejuo, eu dou o dízimo, eu cumpro os rituais, eu participo das reuniões de oração, eu canto no coral, eu não cometo adultério...”  ele estava falando a verdade. Ele era isso mesmo. Mas o que habitava a subjetividade dele - e que ele não enxergava - era o que o impedia de ser santo. Deus não recebe pessoas perfeitas, Ele recebe pessoas quebrantadas.
No Salmo 51 Davi diz que Deus não aceita sacrifícios pelo pecado dele. O que ele está dizendo é que, na verdade, não havia perdão para o pecado dele diante da lei mosaica. Essa lei mandava apedrejar o adúltero. Nesse salmo, Davi está reconhecendo que ele é culpado e merece a morte, merece o castigo divino. Ele não tem o que oferecer para cobrir sua culpa, a única coisa que ele tem para oferecer agora é um coração quebrantado, arrependido. Então, ele apela à misericórdia, ao coração mole de Deus. Essa também é a experiência de Jonas quando Nínive se converte. Ele diz: “eu sabia que o Senhor tem coração mole e iria perdoar”. Deus não resiste a um coração quebrando.
Para vivermos uma vida de santidade diante de Deus, é imprescindível que vivamos em comunidade. Não dá pra ser cristão sozinho. Somos um corpo. O evangelho é sobre o amor, a santidade é sobre viver de maneira relacional e saudável. Precisamos conviver em comunidades de pessoas quebrantadas, com compreensão do evangelho como caminho de saúde emocional e espiritual.
 

    Texto escrito a partir de uma reflexão feita pelo Pr. Ed Rene Kivitz

O Vazio