sábado, 4 de dezembro de 2021

Um relato tenso

Os três últimos dias foram de uma anormalidade sem precedentes em minha vida.

Momentos de terror e pacificação nunca experimentados antes.

Na noite de quinta-feira, meu filho e eu fomos participar de um jantar com amigos do coração e chegamos em casa por volta das 22h00. Ao parar na frente de casa para entrar no estacionamento, meu filho desceu para abrir o portão e, no mesmo instante, um carro apareceu das sombras e parou bruscamente atrás de mim. 

Fui rendida por 3 indivíduos, um deles armado, que me empurraram para dentro do portão que meu filho abria. Assustado, sem entender o que acontecia, ele gritou pelo nome da dona da casa que mora em frente à casa onde estamos morando. Ela apareceu e imediatamente foi também rendida. Nós três fomos empurrados para dentro da casa dela e colocados no quarto. Um dos indivíduos ficou na porta do quarto apontando a arma para nós enquanto os dois vasculhavam a casa da minha senhoria e levavam para o meu carro o que achavam que era de valor.

Foram uns 20 minutos de muito medo, vulnerabilidade, impotência e consciência da instabilidade da vida. Enquanto eu estava sentada olhando para aquela arma apontada, pensei que, a alguns minutos atrás eu estava sentada em uma roda com gente amada, rindo, conversando, comendo, comungando, e agora estava em uma situação tão surreal que parecia ficção.

Enquanto a dona da casa chorava muito e falava com preocupação sobre seus gatos que haviam fugido porque a porta ficara aberta, meu filho levantava a mão pedindo permissão ao indivíduo armado na porta do quarto para ir ao banheiro: “Agora não, moleque! Segura aí e fica quieto!”, foi a resposta firme.

Estranhamente, eu não entrei em pânico. Sentia medo pelos desdobramentos que eu sabia que aquilo poderia ter, mas preferi manter minha mente em conexão com Aquele que me conhece e cuida de mim. Mentalmente fiquei pedindo ao meu Pai por proteção e para que tudo acabasse bem.

Enfim, eles se deram por satisfeitos e foram embora levando meu carro, meu celular e muitos, muitos pertences da casa de minha senhoria. Deixaram o portão aberto e sem o cadeado, decerto na esperança de voltar mais tarde para levar a moto da outra inquilina que mora no mesmo terreno.

Chegara a hora de agir, era o momento de deixarmos de ser passivas. Chamamos os vizinhos, a polícia e eu fui com o carro da senhoria para uma delegacia prestar queixa. Foi quando eu cheguei lá que minha aparente calma terminou. Senti no corpo os efeitos da tensão com tremores, dores no estômago e boca seca; sentia vontade de chorar convulsivamente, mas não consegui.

Auxiliada pelos policiais, logo me recompus e eles me escoltaram até em casa com mais umas 4 ou 5 viaturas. Os vizinhos chegaram e os policiais ficaram em frente à nossa casa tentando rastrear meu celular para reaver o carro e os pertences da vizinha até mais de 3 horas da manhã. Ao ver os rostos de alguns meliantes no sistema da Polícia, conseguimos reconhecer o líder deles, que provavelmente era o único adulto entre os 3. Os outros 2 certamente eram menores – um deles sequer tirou a toca e máscara e só conseguimos ver seus olhos sombrios.

Não houve sono para nenhum de nós 3 naquela noite. A sexta-feira amanheceu e eu precisei ir resolver os problemas práticos da noite de ação. Cancelamento de cartões e contas, cancelamento de celular, acionar seguro do carro, ir à delegacia civil fazer o BO e etc.
A sexta-feira chegou ao fim bem sucedida. Consegui reaver meu número com outro chip e outro aparelho; consegui resolver o problema dos cartões e também pegar o carro extra na seguradora.

Enfim, tudo solucionado, corpo exausto, mente agitada, emoções em frangalho.

Chazinho de melissa e cama. Meu filho e eu dormimos, enfim. Até sermos acordados às 00:10 pelo telefone. Diziam ser da polícia militar e que estavam com meu carro. Eu deveria ir até uma comunidade carente em uma cidade próxima daqui porque o carro estava abandonado na rua.

E o medo de sair no portão 24h depois de ter sido abordada?

E se não fosse a polícia, mas um trote para uma emboscada?

Escoltada pelo pai do meu filho, fomos até o local e verificamos que era de fato a polícia e meu carro fora abandonado praticamente no meio da rua depois de terem assaltando outro veículo que transitava por ali. Os policias contaram que meu carro havia sido usado em pelo menos mais 3 assaltos e um deles tinha sido filmado.

Os policias nos escoltaram até a delegacia civil mais próxima onde um novo BO foi feito.

O carro estava inteiro, sem dano algum, com meio tanque de gasolina e muito sujo, com cheiro muito forte de fumaça. Escoltada até em casa novamente, já passava das 3h da manhã quando finalmente conseguimos dormir, sem, contudo, conseguir relaxar.

Nossas vidas foram poupadas. Não houve um desfecho trágico. Minha senhoria, mais do que eu, perdeu muitos bens materiais. Mas as sequelas emocionais estão muito vivas. Difícil andar na rua sem ter a sensação de estar sendo seguida; difícil sair no portão e não reviver o momento da abordagem. Entendo que não houve violência física contra nenhum de nós, no entanto, a situação em si é de uma violência emocional doentia. O medo de que possa acontecer de novo pode nos manter reféns. Ouvir um carro passando na frente da casa nos faz correr e esconder, mesmo sem saber do que se trata.

Meu filho, que está com 11 anos, fez o seguinte questionamento: “o que leva esses meninos a fazerem esse tipo de escolha na vida? Eles não sabem que isso não tem um futuro?”

Eu não sei responder pelas escolhas– ou falta delas – dos outros, mas sei que preciso escolher viver depois desse trauma. Viver com plenitude. Minha fé em Quem cuida de mim, precisa superar meus medos. Não sei explicar o porquê dos acontecimentos, mas sei que não estávamos sozinhos naquele quarto quando uma arma nos era apontada. Entendo que minha calma naquele momento se deu porque eu estava confiante em quem estava cuidando de nossa vida. A presença dEle é que me trouxe consolo e tranquilidade, mesmo sob a mira de uma arma.

Os anéis se foram. Os dedos ficaram.

Temos vida para seguir nessa luta proletária e para repor o que nos foi tirado. Há aqueles que passam por situações semelhantes que, sem muito esforço, conseguem repor os bens levados. Não nós. Lutamos e trabalhamos MUITO para ter o que temos e que nos é tomado em segundos. Os sentimentos de injustiça e de impotência diante da inevitável, dura e doentia realidade quer nos arrancar a esperança.

Sinto que preciso de um exercício de fé para manter acessa a chama de uma esperança. Não a esperança na humanidade, muito menos a esperança na justiça. Mas a Esperança da Vida. Ele é a minha esperança. Ele é o meu amanhã. É nele que preciso continuar enraizada para não ser engolida pelas atrocidades humanas.

Seguimos aqui firmes pela graça dEle, até que Ele venha!

 

sábado, 13 de novembro de 2021

O motorista Luz

Há alguns anos fiquei presa em um ônibus cruzando a cidade de São Paulo durante a hora do rush.  

O tráfego mal estava se movendo.  O ônibus estava cheio de pessoas frias e cansadas que estavam profundamente irritadas umas com as outras, com o próprio mundo. 

Dois homens latiram um para o outro sobre um empurrão que pode ou não ter sido intencional.  Uma mulher grávida subiu e ninguém lhe ofereceu um assento.  A raiva estava no ar. Nenhuma misericórdia seria encontrada ali.

Quando o ônibus se aproximou da avenida Paulista, o motorista pegou o interfone e anunciou:

“- Gente, eu sei que vocês tiveram um dia difícil e estão frustrados.  Não posso fazer nada sobre o clima ou o trânsito, mas aqui está o que posso fazer: quando cada um de vocês descer do ônibus, vou estender a minha mão e, enquanto você passa, coloque seus problemas na palma da minha mão, certo? Não leve seus problemas para casa ou para suas famílias esta noite, apenas deixe-os comigo.  Meu caminho passa direto pelo rio Tietê e quando eu passar por lá mais tarde, abrirei a janela e jogarei seus problemas na água.”


Foi como se um feitiço tivesse sido dissipado. 

Todos começaram a rir.  Os rostos brilharam de surpresa e deleite. 

Pessoas que vinham fingindo na última hora não perceberem a existência um do outro, de repente, estavam sorrindo um para o outro. “Esse cara está falando sério?”

Ele estava falando sério.

Na próxima parada, conforme prometido, o motorista estendeu a mão com a palma para cima e esperou. 

Um por um, todos os passageiros que saíam, colocaram suas mãos logo acima da dele e imitaram o gesto de deixar algo cair em sua palma. 

Algumas pessoas riram enquanto faziam isso, outras choravam, mas todas fizeram.

O motorista também repetiu o mesmo adorável ritual na próxima parada. 

E na próxima.

Em todo o caminho até o rio.

 

Vivemos em um mundo difícil, meus amigos. 

Às vezes, é extremamente difícil ser um ser humano. 

Às vezes, você tem um dia ruim. 

Às vezes, você tem um dia ruim que dura vários anos. 

Você luta e falha.

Você perde empregos, dinheiro, amigos, fé e amor.

Você testemunha eventos horríveis acontecendo no noticiário e fica com medo e retraído.

Há momentos em que tudo parece envolto em trevas. 

Você anseia pela luz, mas não sabe onde encontrá-la.

Mas, e se você for a luz? 

E se você for o próprio agente de iluminação que uma situação escura implora?

 Isso é o que este motorista de ônibus me ensinou, que qualquer um pode ser a luz, a qualquer momento. 

Esse cara não era um grande jogador de prestígio. 

Ele não era um líder espiritual. 

Ele não era um influenciador experiente nas mídias. 

Ele era um motorista de ônibus, um dos trabalhadores mais invisíveis da sociedade.  Mas ele possuía poder real e o usou lindamente para o benefício daqueles que o cercavam.

Quando a vida parece especialmente sombria ou quando me sinto particularmente impotente em face dos problemas do mundo, penso neste homem e me pergunto:

“O que posso fazer agora para ser a luz?”

Claro, eu não posso encerrar pessoalmente todas as guerras, ou resolver o aquecimento global, ou transformar pessoas irritantes em criaturas totalmente diferentes. 

Eu definitivamente não consigo controlar o tráfego. 

Mas eu tenho alguma influência sobre todos que encontro, mesmo que nunca falemos ou aprendamos o nome um do outro.

Não importa quem você seja, ou onde esteja, ou quão mundana ou difícil sua situação possa parecer, eu acredito que você pode iluminar o seu mundo. 

Na verdade, acredito que esta é a única maneira pela qual o mundo será iluminado, um brilhante ato de graça de cada vez, até o rio.

 


 Texto de Elizabeth Gilbert

Adaptado por Lia Silva

terça-feira, 22 de junho de 2021

Evangelização

Meu pai foi um plantador de igrejas.
Antes disso, foi um desbravador. Literalmente.
Aos fins de semana, ele saia com sua moto para andar pelos matos e fazendas do interior do Rio Grande do Sul. A mala dele era uma bolsa de couro marrom que ele enchia de folhetos com trechos bíblicos e a pendurava à tiracolo. Lembro-me que um dos trabalhos que eu e meus irmãos tínhamos era carimbar os folhetos que ele levaria (nós tínhamos entre 1 e 5 anos e tudo era diversão!). No carimbo havia o nome e o endereço da congregação na cidade.
Aos poucos, as pessoas foram chegando para congregar conosco. Mas havia muita gente que vivia embrenhada pelos “peraus” da serra gaúcha que nunca tinha ouvido falar de Jesus, e estes eram o alvo de meu pai.
Pouco depois da moto, ele conseguiu uma kombi e a equipou com colchão, fogão, suprimentos, a moto e uma bicicleta. Assim, ele podia ficar mais dias e noites lá fora, procurando pelas pessoas onde elas estivessem. Se o local não podia ser acessado de kombi, então ele ia de moto ou de bicicleta, mas ia. Ao encontrar com as pessoas, ele lhes entregava um folheto, falava de Jesus e orava com elas. Nem todos o recebiam bem, e ele tem muitas histórias para contar sobre isso.
Aos poucos a congregação foi crescendo, o nome de Jesus foi sendo conhecido na cidadezinha que hoje nada mais tem de “inha”.
Eram tempos diferentes do mundo globalizado em que vivemos hoje. Telefone era artigo de luxo e internet era algo com o que nem sonhávamos. Por isso, a atitude dele de se embrenhar pelas matas para fazer o nome de Jesus conhecido é um ato memorável para mim.
Infelizmente, nossa atualidade é diversa daqueles tempos, pois, agora, quem precisa ser evangelizado são os próprios evangélicos. Se no passado o nome de Jesus era desconhecido, hoje ele é amplamente repetido e até desrespeitado. O nome de Jesus tornou-se algo tão comum que perdeu o encanto.
O ato de evangelizar precisa ir muito além de espalhar o nome de Jesus, precisa ser uma prática de vida com uma intimidade com Deus tão grande que as palavras sejam desnecessárias. Ouvimos muitas palavras e sermões de ‘homens de Deus’ e de ‘profetas’, mas vemos pouca diferença na vida das pessoas.
O Evangelho precisa ser vivido antes de ser falado, senão, vira discurso vazio e sem sentido. A encarnação do Evangelho é Cristo. Portanto, evangelizar é viver como Cristo viveu, é agir como Ele agiu, é perdoar como Ele perdoou, é doar-se como Ele se doou. Qualquer outro estilo de vida que não imite a Cristo, não é uma vida de evangelização.
Meu reconhecimento e apreciação por todos aqueles que, como o meu pai, empenharam-se por tornar o nome de Jesus conhecido, e minha oração por arrependimento e conversão daqueles que apenas falam, mas não vivem o Evangelho de Cristo.

Santidade X Perfeição


O que vem à sua mente quando você ouve as palavras 'santo', 'santa', 'santidade'?
A palavra ‘Santidade’ é geralmente usada em categorias dentro do mercado religioso, ou para remeter a uma vida de reclusão em monastério, para nos lembrar de pessoas que se retiraram da sociedade para viverem reclusas e, assim, alcançarem a santidade.
Algumas respostas bem comuns à esta pergunta abrangem:
1)      Santidade tem a ver com a perfeição moral; santo é o indivíduo perfeito, aquele que não peca.
2)      Santidade é a busca da perfeição moral, é o processo para se chegar na perfeição moral.
3)      Santidade é, portanto, impossível de ser alcançada, já que ninguém vai chegar na perfeição moral.
4)      Santidade é para pessoas muuuuito espirituais. Pra ser santo não dá pra estar no chão da vida.
Biblicamente, porém, podemos dizer que a santidade é o que nos sustenta, de tal maneira que o peso da existência não nos esmague.
A santidade é um tipo de coração diante de Deus.
Santo não é aquele que é perfeito moralmente, não é o cara da impecabilidade.
O rei Davi era um pecador consciente. Ele comete o pecado do adultério dentro da relação de intimidade com Deus. Quando o profeta o confronta, ele se identifica como culpado. Ele não se justifica, não terceiriza seu pecado. Isso só é possível quando não perdemos nossa intimidade com Deus.
“Deus tem mais prazer na desobediência íntegra do que na obediência hipócrita.”
Deus não sai da cena quando a gente peca. Estamos na presença de Deus o tempo todo, inclusive quando pecamos. Por isso que a santidade tem a ver com um coração que não tem reservas com Deus.
“Os olhos do Senhor passeiam pela terra procurando um coração inteiramente dele.” 1 Crônicas 16:9
A vida dos humanos é cheia de tentações, cada um carrega consigo seus próprios limites. Quando queremos ser tão santos a ponto de não nos sentirmos mais tentados pelo que é comum aos humanos, estamos nos descaracterizando de nossa humanidade, nos desconfigurando do estilo humano de ser. Isso não é ser santo.
Santidade é viver com tudo o que você é na presença de Deus. Sem medo, sem vergonha, sem falsidade, sem constrangimento, sem irresponsabilidade, com todas as minhas intenções, com meu coração inteiro diante de Deus. Estando meu coração inteiro, haverá nele luz e sombras.
Quando Deus chama Abraão e diz: anda em minha presença e sê perfeito, a gente logo pensa: anda na minha presença e não peque! Mas o que Deus tá dizendo é: “Anda em minha presença e sê inteiro, seja íntegro na minha presença.”
Entender a santidade como perfeição, ou como a busca por ela, vai criar um problema do ponto de vista da saúde emocional, pois vai exigir do ser humano algo que não é possível de se alcançar, e isso vai gerar culpa, vai gerar frustração, julgamento. Nesta perspectiva de perfeição, quando o indivíduo sofre uma queda, quando ele comete um erro, ele é linchado, é desqualificado, é julgado e condenado.
As instituições religiosas, os dogmas, os credos religiosos exigem essa santidade de perfectibilidade moral. Mas isso não é compatível com o ser humano.
As pessoas que buscam esta santidade baseada na perfeição são chamadas por Jesus de hipócritas, de sepulcros caiados. São os fariseus que buscam a aparência de perfeição moral; são eles que não têm pecados escandalosas, que mantêm a aparência de perfeição moral. No entanto, isso não é compatível com a condição humana e nem com a Bíblia.
O apóstolo Paulo NÃO disse: “Deus sabe que eu era pó, mas depois que encontrei com Jesus na estrada de Damasco eu deixei de ser pó!” NÃO! Ele disse: “sou pó, Deus sabe que sou pó.  O bem que quero fazer, não faço; mas o mal que não quero, esse eu faço. Miserável homem que sou. Mas graças a Deus que nenhuma condenação pesa sobre mim por causa de Cristo Jesus.” Esse herói da fé no Novo Testamento foi um homem atormentado, agoniado, ciente de sua posição diante de Deus.
As organizações religiosas que vivem com esse conceito de santidade como perfectibilidade moral não conseguem lidar com pecadores, com seres humanos; eles lidam apenas com fariseus hipócritas, e quando flagram alguém em pecado, tratam logo de julgar, condenar, acusar de ter vida dupla. Isso é doentio.
Paulo disse que Jesus veio ao mundo para salvar os pecadores dos quais ele era o principal, e isso não é uma linguagem retórica. Ele pensa isso de si mesmo e, na verdade, é o que deveríamos pensar de nós mesmos.
Esse conceito de santidade como perfeição moral faz a gente idealizar as pessoas, nos faz pensar do outro mais do que se deveria pensar. Deveríamos saber que o irmão que caiu está na luta do dia a dia igual eu estou. Quando eu deixo de idealizar o outro e entendo que somos feitos do mesmo pó, então sou capaz ajudá-lo a levantar-se quando o vir caído, ao invés de condená-lo. É um conceito de humildade alheia – húmus = terra, pó. Assim consigo olhar para o outro e ver o mesmo pó do qual também sou formado. Agir assim traz saúde emocional e relacional.
Gênesis 18:27-28 apresenta um conceito de santidade como atrevimento.  Abraão diz a Deus: “Eu só pó e cinza, mas me atrevo a falar contigo”. O homem santo convive com a consciência de que é pó, mas, por causa da graça, do amor e do acolhimento de Deus a ele como humano, ele pode dizer: sei que sou pó, mas me atrevo a falar contigo, eu me atrevo a ser mais do que pó porque eu fui criado para ser mais do que isso.
A pessoa que usa essa expressão: “Deus sabe que sou pó” como justificativa para continuar vivendo irresponsavelmente, não está falando a verdade toda. Deus sabe que eu sou pó, mas também sabe que eu recebi o fôlego da vida, Deus sabe que fui criado à imagem e semelhança dele, Deus sabe que sobre mim repousa o Espírito Santo, Deus sabe um monte de outras coisas sobre mim que podem me fazer parar com essa desculpa para viver de modo vulgar, irresponsável, infantil, leviano e desonesto.
A santidade me faz viver essa ambiguidade: saber que sou pó, mas não quero ser pó, então me atrevo a buscar a Deus para transcender minha condição de apenas pó, pois sei que não sou só pó.
A condição humana e as estruturas religiosas não são compatíveis com o conceito de santidade atrelado à noção de perfectibilidade moral. É seguindo este conceito que a religiosidade se apega e justifica as maiores crueldades sobre os fiéis; ela manipula a culpa dizendo: você não é o que você deveria ser, por isso Deus está irado com você, a mão de Deus vai pesar sobre sua vida até fazer de você uma pessoa santa.
Ora, nós não fazemos isso com nossos filhos! Por que cremos que Deus faz isso com a gente? Será que somos pais mais amorosos para nossos filhos do que Deus é para conosco?
Paulo nos ensina em Filipenses 3 dizendo (v.12) “não julgo ter alcançado a perfeição, mas me esqueço do que ficou pra trás e sigo para o futuro”. No entanto, no verso 15 ele escreve: “nós que somos perfeitos”. Como assim? No v. 12 ele não alcançou ainda, mas no 15 ele já é perfeito? No verso 16 ele esclarece: “prossigamos na medida daquilo que já alcançamos”.  Esse é o conceito de santidade: a integridade.
Eu sei que não cheguei lá – na perfeição moral - mas sei que já fui mudado. Lutero escreveu: “Eu sei que não sou o que devo ser; ainda não sou o que serei; mas, pela graça de Deus, sei que não sou mais o que era”.
Cada um de nós precisa ser íntegro com aquilo que já conquistou. Não tem outro lugar para começar a ser santo, senão o lugar da integridade; não como perfeição, mas como autenticidade, honestidade diante de Deus, inteireza de coração.
Outro conceito de santidade é o de santidade como quebrantamento: “um coração quebrantado e contrito, Deus não despreza”. (Salmo 51:17)
É preciso lembrar que quando o fariseu orava assim: “eu não sou como os outros, eu jejuo, eu dou o dízimo, eu cumpro os rituais, eu participo das reuniões de oração, eu canto no coral, eu não cometo adultério...”  ele estava falando a verdade. Ele era isso mesmo. Mas o que habitava a subjetividade dele - e que ele não enxergava - era o que o impedia de ser santo. Deus não recebe pessoas perfeitas, Ele recebe pessoas quebrantadas.
No Salmo 51 Davi diz que Deus não aceita sacrifícios pelo pecado dele. O que ele está dizendo é que, na verdade, não havia perdão para o pecado dele diante da lei mosaica. Essa lei mandava apedrejar o adúltero. Nesse salmo, Davi está reconhecendo que ele é culpado e merece a morte, merece o castigo divino. Ele não tem o que oferecer para cobrir sua culpa, a única coisa que ele tem para oferecer agora é um coração quebrantado, arrependido. Então, ele apela à misericórdia, ao coração mole de Deus. Essa também é a experiência de Jonas quando Nínive se converte. Ele diz: “eu sabia que o Senhor tem coração mole e iria perdoar”. Deus não resiste a um coração quebrando.
Para vivermos uma vida de santidade diante de Deus, é imprescindível que vivamos em comunidade. Não dá pra ser cristão sozinho. Somos um corpo. O evangelho é sobre o amor, a santidade é sobre viver de maneira relacional e saudável. Precisamos conviver em comunidades de pessoas quebrantadas, com compreensão do evangelho como caminho de saúde emocional e espiritual.
 

    Texto escrito a partir de uma reflexão feita pelo Pr. Ed Rene Kivitz

domingo, 25 de abril de 2021

Um sábado durante a pandemia

 Era sábado à noite. Uma noite agradável e estrelada. 

O menino de 10 anos estava eufórico. Fazia mais de um ano que a pandemia havia isolado a população, e o menino não via a hora de sair novamente. 

A mãe estava levando-o para tomar um lanche em um food truck. Pararam em um dos trailers que servia hambúrguer e escolheram uma mesa no cantinho da calçada, o mais isolado possível. 

Sentados ao ar livre, o menino e a mãe fizeram seus pedidos e ficaram à espera. Conversaram sobre os programas de internet que o menino acompanhava, falaram sobre as aulas on-line, sobre os amigos internautas e riram de bobagens. Um momento único entre mãe e filho que tanto o menino quanto a mãe apreciavam cultivar.  

E então aquela jovem mulher aproximou-se da mesa deles, tímida. Segurava uma sacola plástica grande pendurada no braço.

- Boa noite, com licença. Posso atrapalhar um pouquinho? – E começou a tirar algumas caixinhas de sua sacola e colocou-as sobre a mesa enquanto explicava que, por causa da pandemia, estava sem trabalho, com 4 filhos para criar e por isso estava vendendo artesanatos que ela fazia e os filhos pintavam.

- Essa caixinha grande é 20,00 e essa pequena é 10,00.

A mãe sentiu o coração apertar. Sem muita esperança para poder ajudar, perguntou:

- A senhora aceita cartão?

O brilho sumiu dos olhos da jovem mulher.

- Não, senhora!

- Puxa, sinto muito! Eu estou só com o cartão aqui.

- Ah, tá bom, fica para a próxima então. – E foi guardando seus artesanatos novamente na sacola.

E então o menino se levantou dizendo:

- Eu acho que eu tenho dinheiro na minha carteira! Ainda bem que eu lembrei de trazer hoje, pois eu sempre esqueço, mas hoje ela vai servir para alguma coisa.

A mãe foi surpreendida. De onde o filho tinha dinheiro? Será que tinha mesmo? Será que não seria frustrado ao abrir a carteira e vê-la vazia?

Ele sofreu para tirá-la do bolso apertado, mas quando conseguiu, anunciou alegre:

- Eu tenho 4,00!

- Ah, filho! Então não dá, pois é 10,00!  - Orientou a mãe.

- Não, tudo bem, pode ser 4,00 sim! Não tem problema! – exclamou animada a mulher.

- Mas não vai te deixar no prejuízo?

- Não, imagina! É tão linda a disposição dele!

Ela pegou o dinheiro que ele lhe ofereceu, deixou-o escolher a caixinha e despediu-se com um sorriso enorme no rosto dizendo à mãe:

- Parabéns por seu filhão, viu?

A mãe olhou para o menino com as lentes daquela mulher e não pode deixar de sorrir. Que coração lindo aquela criança de 10 anos mostrara naquele momento.

Talvez também por isso Jesus tenha alertado que só entrará no Reino dos céus aqueles que tiverem o coração puro como o de uma criança. 

E aquela foi a melhor noite de sábado que tiveram até aquele momento durante a pandemia.


Por Lia Silva 

24/04/2021

terça-feira, 23 de fevereiro de 2021

Uma batalha pela autenticidade e dependência

Davi era o caçula de oito irmãos. Ainda jovem, foi enviado a viver no campo para cuidar das ovelhas do pai. Enquanto seus irmãos, grandes e fortes eram convocados para lutar no exército do Rei Saul, Davi permanecia no campo com suas ovelhinhas.

Sozinho no meio do nada, ele dedicou-se às artes: tornou-se excelente harpista e um poeta sensível. Cantava e recitava para seu público de ovelhas. Eu diria que, se estivesse entre nós hoje, ele seria um perfeito homem das artes, totalmente de humanas!

Durante seu tempo com as ovelhas, Davi também se dedicou à amizade com o Eterno. Tornou-se íntimo dele como poucos o foram em sua época. E isso ficou muito claro quando ele relata ao rei Saul como foi que o Eterno o livrou das garras de um urso e de um leão, que tentaram roubar-lhe o rebanho. Um garoto que ousou em sua fé e foi recompensado!

Quando o gigante Golias ameaçou as tropas de Israel e zombou do Eterno, Davi prontamente se apresentou ao rei Saul para fazer com o gigante o mesmo que havia feito com o leão e o urso. Ele foi enfático em seu diálogo com o rei Saul:

“Sou um pastor e cuido das ovelhas do meu pai. Quando um leão ou urso atacava um cordeiro do rebanho, eu saia atrás, matava e resgatava o cordeiro. Se o animal quisesse me atacar, eu o agarrava, torcia seu pescoço e o matava. Leão ou urso, qualquer um deles eu matava. Por isso, farei a mesma coisa com esse filisteu incircunciso que está afrontando o exército do Deus vivo. O Eterno que me livrou das garras do leão e das garras do urso, também me livrará das mãos desse filisteu.” (1 Samuel 17:34-37)

Assim, o rei consentiu que o jovem enfrentasse o inimigo que aterrorizava seu exército. Porém, sabendo que Golias tinha mais anos de experiência em guerra do que Davi tinha de vida, resolveu ajudar o menino entregando-lhe sua própria armadura completa.

Davi vestiu-a, mas mal conseguiu andar. Resoluto, tirou tudo dizendo: “Não estou acostumado a isto.” Em seguida, tomou seu cajado de pastor, escolheu 5 pedras lisas, colocou-as em seu bolso e seguiu para o campo de batalha confiante.

O ato de tirar de sobre si o que pertencia a outro, diz muito sobre o caráter do jovem. Mesmo estando diante do rei, Davi escolheu ser quem de fato era: um pastor e não um guerreiro. Ele tinha convicção de quem ele era, e de quem ele NÃO era.

Poucas coisas na vida são mais desastrosas do que tentarmos viver como se fôssemos algo além do que de fato somos. Pessoas que tentam viver pelos padrões dos outros acabam sempre frustradas e machucadas. Alguns se perdem tanto nesse faz de conta, que acabam perdendo a própria identidade.

É necessário que a gente se retire para os desertos da vida para descobrirmos quem somos. Conhecendo-nos a nós mesmos, estaremos melhor preparados para enfrentar as batalhas da vida com sinceridade, honestidade e autenticidade.

Davi não era guerreiro e sabia disso, por isso rejeitou a armadura. Ele era um pastor e foi com as armas de pastor que ele enfrentou a luta, pois sabia que não seria a força dele naquele campo de batalha. Ele tinha plena convicção e certeza de quem iria batalhar em seu lugar. Depois de ouvir os insultos de Golias, Davi respondeu com segurança:

“Você vem contra mim com espada, lança e dardos, mas eu venho em nome do Senhor dos exércitos de anjos, o Deus dos exércitos de Israel, de quem você zomba e a quem você amaldiçoa. (...) Hoje mesmo o Eterno entregará você nas minhas mãos e toda a terra saberá que há um Deus extraordinário em Israel. Todos aqui ficarão sabendo que o Eterno salva sem depender da lança ou da espada. A batalha pertence ao Eterno e Ele entregará vocês em nossas mãos.” (1 Samuel 17:45-47)

Davi sabia quem Deus era, por isso enfrentou o inimigo e venceu a batalha.
Davi sabia quem era, por isso rejeitou aquilo que não lhe cabia, aquilo que era bom para o outro, mas não para si.

Quanto melhor conhecermos o Eterno, mais saberemos quem somos e o quanto dependemos dele. Isso é de uma libertação sem precedentes.

Aqui ficam dois desafios para mim e para você: a) conhecer o Eterno até o ponto de poder descansar nele, sabendo que Ele luta nossas batalhas; b) conhecermos a nós mesmos a tal ponto de rejeitar tudo aquilo que macula nossa autenticidade e identidade.

Você está pronto para essa caminhada?

Vamos juntos e o resto a gente vai aprendendo no Caminho
.

 

Lia Silva, 23/02/2021


Os textos bíblicos foram retirados da versão bíblica "A Mensagem".

O Vazio