Há muitos cristãos brasileiros estarrecidos diante do cenário político, que já não se separa mais do religioso.
É uma situação extremamente grave, aviltante, humilhante
para aqueles seguem a Cristo.
Fique aqui posto que, quando falo de Cristo, não estou me
referindo à alguma religião fundada por homens em nome dele.
Estou falando de cidadãos que encontraram nele a razão de
viver e seguem-no dia-a-dia. Estes não precisam de uma religião para
sentirem-se legitimados.
Quem conhece um pouco da vida de Cristo quando esteve nesta
terra sabe que ele não tinha intenção alguma de fundar uma nova religião.
Ele veio para ser o salvador de pessoas, para ser um modelo
de Ser Humano para todos. Quem pelos caminhos dele trilha, tornar-se um Ser Humano
mais humano, mais próximo daquilo para o que fomos criados.
Mas o homem tem sede pelo poder, pela dominância, sente prazer em sentir-se superior ao seu semelhante.
Por causa disso, o chamado de Cristo
para andar junto, vira instituição cristã liderada, controlada e dominada pelo Império
estatal de Constantino (lá pelos anos 300 d.C.).
Todo tipo de podridão do coração humano enraizou-se na instituição
chamada igreja cristã.
Os ensinos do Cristo foram esquecidos e desprezados em detrimento
do poder, da ganância, do controle comportamental e moralista que detinham
sobre a população.
A miséria social, a fome, a desigualdade já não eram mais
vistas como pecado social, mas como um selecionador de quem era de Deus e de
quem não era, de quem era digno de ser chamado filho de Deus e aqueles que não
teriam essa honra concedida única e exclusivamente pela igreja.
Séculos se passaram e tudo aquilo que Jesus Cristo ensinou estava esquecido e enterrado debaixo de rituais eclesiásticos, banimentos
e castigos físicos, normalização da miséria e legalização da desigualdade social.
Tudo era visto como a vontade de deus.
Então, um homem atormentado por seu pecado, torna-se um
clérigo e entende as palavras de Cristo sobre a graça salvadora. E ele muda o
rumo da história religiosa-política.
Foi o monge Martinho Lutero que deu o pontapé inicial para a
Reforma Protestante e, depois dele, outros vieram e dividiram a única
instituição cristã que havia até então, em duas. De um lado, os “Protestantes Reformados”
e do outro os “Católicos”.
Atualmente, quando falamos de Reforma, estamos nos referindo especificamente aos textos de Calvino que, depois de Lutero, é o mais popular dentre
os reformadores.
No entanto, quando falamos de Protestantes, estamos
evocando o nome de todos eles, dezenas e dezenas de homens que dedicaram suas vidas
para trazer à luz o evangelho da graça de Cristo.
Estes homens trouxeram à lembrança dos cristãos o que foi
que Cristo ensinou sobre salvação.
Aprendemos que a salvação é pela graça, isso quer dizer que
Deus salva o homem pelos méritos de Cristo.
Não há nada que o homem possa fazer para salvar-se a si
próprio, mas Cristo fez tudo o que era necessário.
A nós, cabe-nos ter fé nos méritos de Cristo e viver uma
vida de gratidão por um bem recebido sem merecimento e, constrangidos pelo amor,
vamos nos tornando mais parecidos com ele.
Mas o ensino Protestante também se perdeu na obscuridade da
alma humana.
O que presenciamos no Brasil hoje é fruto de mais distorções
do evangelho da graça.
Distorções estas que criaram dezenas, senão centenas, de
denominações evangélicas empenhadas em “evangelizar”.
Acontece que essa “evangelização” nada tem a ver com o Evangelho
que Cristo pregou ou com os ensinamentos dos protestantes.
Os evangélicos pregam a salvação através da aprovação de Deus.
Para eu ser salvo, eu preciso ter a aprovação de Deus, e só
a tem quem se comporta de tal ou tal forma.
Daí vem o discurso moralista comportamental, quando a meritocracia
tem mais audiência do que a graça.
Por isso é tão comum entre os evangélicos aquela lista
interminável de “pode” e “não pode”.
Ser evangélico é ser reconhecido pelos itens que a pessoa
cumpre ou deixa de cumprir.
Quando alguém deixa de cumprir um item da lista, é repreendido,
humilhado publicamente e, por vezes, expulso do meio evangélico.
Daí a quantidade de denominações evangélicas existentes. Alguém
que é expulso de uma comunidade, inconformado, funda sua própria denominação
onde se torna o oráculo das regras e aquele que decide o que é permitido e o
que não é.
Esse moralismo comportamental força os evangélicos a não
aceitarem em seu meio aqueles que são ‘diferentes’, ou aqueles que não
conseguem viver por sua cartilha.
Por isso encontramos entre eles tantos homofóbicos,
misóginos, preconceituosos, ditadores compulsivos, arrogantes.
Embebidos pelo poder, eles acreditam que podem dominar o
Brasil, pois é o “Brasil acima de tudo, e deus acima de todos”.
Na visão destes evangélicos, a fé é o poder. Pela fé, eles
acreditam que podem governar um país impondo suas listinhas de deveres e sanções
aos desobedientes.
Aprendemos com o evangelho de Cristo que a fé não é um poder.
E o poder também não é a fé.
A fé é um elemento de convicção, mas não emana dela poder
algum.
O poder é o Evangelho.
O poder é o próprio Cristo.
É revestido de fé Nele que o discípulo poderá viver como
Cristo viveu neste mundo.
Essa fé faz com que o homem que está dela revestido possa
viver uma vida de serviço e de amor, como Cristo viveu.
Mas os evangélicos usam a fé como sendo um poder para
ganhar mais poder e travar batalhas espirituais contra aquilo que impede o
avanço de seu poder.
As bases bolsonaristas estão na teologia da batalha
espiritual e da prosperidade, e não na teologia da graça.
A convicção que eles têm de serem superiores e melhores
porque são os eleitos de Deus é resultado de uma vulgarização do calvinismo ao
longo da história.
A doutrina da eleição que Calvino ensinou foi vulgarizada e
deu lugar a um discurso de privilégios que leva à segregação e estabelece uma
relação de meritocracia entre os fieis e não fieis.
O cerne do que Calvino pregava era a graça, mas acabou se
tornando apenas um discurso de hegemonia por causa da doutrina da eleição.
Isso leva a uma lógica de puro moralismo, pois é necessário
ter a aprovação de Deus através das obras.
Essa relação que os evangélicos atuais têm com Deus é de
poder e não mais de amor.
Se eu preciso da aprovação de Deus, então preciso ser
moralmente correto, ou não serei aceito.
Ora, isso exclui completamente o elemento “amor”.
Só o amor é capaz de conviver com o contraditório, o poder
não.
O poder exclui. O amor inclui e liberta.
Para quem vive pelo evangelho e para o evangelho, tem como
mediador apenas a Trindade, o Cristo é o mediador.
Não é necessário um oráculo humano validando minha crença e
muito menos uma instituição.
Mas, para os evangélicos, tanto a instituição como o oráculo
– aquele homem de deus a quem todos devem ouvir e jamais questionar – são extremamente
necessários para o avanço do poder.
Portanto, o moralismo pragmático que os evangélicos insistem
em proclamar, e pelo qual excluem seres humanos, é totalmente contrário ao
evangelho ensinado por Cristo.
É necessário ter cautela para saber discernir entre os
evangélicos e os discípulos de Cristo.
Um discípulo perdoa e aceita seu semelhante porque sabe que
também foi perdoado e aceito por Cristo, sem nada merecer.
Um discípulo de Cristo vai ser guiado pelo amor que recebeu
do Mestre, e não pelo poder e sua sedução.
Um discípulo vai posicionar-se em favor do oprimido e não
do opressor.
Um discípulo vai transbordar amor porque ele foi alvo de um
amor maior, e sua resposta ao mundo não pode ser outra senão o serviço amoroso ao próximo.
Assim sendo, quando você ver e ouvir sobre as loucuras dos
evangélicos, saiba que há um grupo de discípulos de Cristo que não concorda e
não apoia os evangélicos deste país.
Há que se saber separar quem são os evangélicos e quem são
os discípulos.
Texto de Lia Silva (baseado na aula aberta ministrada por Ariovaldo
Ramos em 02/09/2002)
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