domingo, 13 de dezembro de 2020

Fé e emoção

     Faz já algum tempo que venho pensando na relação que é feita entre fé e emoções. Cheguei a rascunhar um texto sobre o assunto, mas não publiquei. Hoje o assunto voltou à tona quando assistia a uma aula online[1]. Então resolvi voltar ao meu texto e reescrevê-lo à luz do que acabo de ouvir.

     O grande problema da maioria das crenças atuais repousa na introdução das pessoas crédulas à necessidade de terem sua fé validada na emoção e no sentimento. A fé acaba por ser vinculada à emocionalidade. O indivíduo entende que só é bom em sua crença se ele for capaz de se emocionar profundamente.

     A fé só é validada se a pessoa for possuída de muita emoção. No início dá certo, mas logo vem a angústia porque não é todo mundo que consegue viver em estado emocionalizado por um longo tempo. Muitas pessoas acabam sofrendo certos transtornos psicológicos e podem acabar bipolares pela necessidade de forçar uma euforia intensa.

     Alguns sistemas de crenças praticam ritos que induzem à emoção. Nestes ritos, as pessoas experimentam catarses treinadas, ou seja, sugestões emocionadas, ditos que induzem à emocionalidade. Acaba se tornando uma intensa busca de validação emocional para dizer que tal indivíduo está bem naquela crença. Tais catarses treinadas são vistas como fé.

     Especificamente entre os cristãos pentecostais não vemos exatamente um rito de indução à catarse, mas há uma ambiência para os cultos com gritos, cria-se um clima específico, usa-se jargões, e há uma orquestração poderosa. Alguém fala em línguas, outro profetiza, outros glorificam em alta voz. Esta é uma orquestração indutora para a emocionalização.

     Porém, isso também tem um limite. O cérebro não consegue viver neste estado durante muito tempo. É como no estado apaixonado, vive-se assim por um ano ou pouco mais, mas logo passa, e o cérebro não aguenta existir sob essa opressão das emoções. O cérebro começa a se retrair para acalmar-se e conseguir seguir mais pacificamente.

     Quanto mais a pessoa demonstrar tais emoções publicamente – falar em língua, chorar, gritar, suar, rodopiar - mais ela será considerada espiritual, piedosa, santificada, cheia de fé. Se o crente não fazer isso ou aquilo, é porque não crê. Mas, e quando a emoção começa a falhar? Então começa a teatralização dos sentimentos forjados e falsificados.

     Portanto, é possível verificar que, em um ambiente de fé de natureza cristã, há pelo menos 3 níveis de classificação dessa fé emotiva:
1) Crenças/credo e doutrina – mais praticado pelos reformados que conhecem bem seus credos e chamam isso de ‘minha fé’. Mesmo que seja um conhecimento raso, só de decoreba das doutrinas a serem seguidas, a simples repetição desses credos racionais tornar-se a “fé” deles.
2) Crenças e ritos – A prática do rito gera a emocionalização. De modo geral, os cristãos gostam da emoção da fé, de sentir a fé – “olha como tô arrepiado”. O rito induz bastante ao emocional e a pessoa vai embora daquela reunião/culto/missa dizendo que “sentiu Deus”. As crenças religiosas tem esse viés de quererem sentir a divindade.
3) Grupos de crentes de catarses induzidas – são grupos pentecostais onde o Espírito Santo só se manifesta se o crente for derrubado. As pessoas começam a rodopiar, entram em um giro espiritual até serem supostamente possuídas pelo Espirito Santo e então caem, e outros ao seu redor vão também caindo. É um estado de catarse induzida delirante. Tais indivíduos se levantam dali dizendo que foram ‘visitadas pelo Espirito Santo’. Outros que buscam apenas sensações e emoções mudam de um grupo para outro, para ir renovando as sensações.

     Para essas pessoas, a relação entre Deus e fé são carregadas de expectativas diversas que vão da riqueza à proteção contra qualquer forma de catástrofe; são crenças praticadas para servir como apólices de seguro, de saúde, de riquezas, e isso implica na validação da fé por meio da emoção. A fé destes coloca Deus em uma situação de devedor ao que crê, assim, o crente exige de Deus determinadas bênçãos porque tem fé nele.

    O que de fato acontece é que quando chega a hora do desconforto e da angústia, quando já não tem mais emoção positiva, então vem a frustração e até o ateísmo. Pois, se o indivíduo busca sentir Deus, mas já não o sente, logo, Deus não existe, ou não está mais interessado em se manifestar.


Para tais pessoas, Deus só é Deus quando é emoção vivenciada. Mas quando chega a hora do desconforto, da doença sem cura, do sofrimento indizível, da falência, então começa a angústia pela validação da crença. Tal crente precisa que aquele conjunto de crenças que ele pratica – aquele dízimo, aquela oferta, aquela frequência aos cultos, aquele coral e escola bíblica onde ele não falta - tudo isso precisa ser validado pelo sentimento; e quando não há mais este sentimento, então a vida do indivíduo se arrebenta. Neste momento se manifesta um dos maiores desesperos para alma cristã ocidental e de experiência pentecostal.

     Em um sistema de crenças baseado em emoções que são passageiras, a fé não se sustenta quando chega a hora do esmagamento absoluto. O cérebro do indivíduo já não consegue mais entrar em catarse indutiva alguma, a pessoa não encontra Deus em lugar algum e sem a sensação e a emoção, torna-se enlouquecido. Esse deus como sensação e emoção se transforma no poder mais enlouquecedor que podemos conhecer. É por isso que 70% dos pacientes de clínicas psiquiátricas são pessoas vinculadas às igrejas que incitam à fortes emoções e criam a correlação entre deus-sentimento-emoção. Não tem alma que aguente.

     A fé segundo o Evangelho de Jesus:
O Evangelho não é um sistema de crenças.
O Evangelho é um caminho de consciência.
Evangelho é amor que pratica justiça, que promove paz, que perdoa os arrependidos.


O Evangelho é não julgar os outros, muito menos segundo a aparência, é busca de discernimento silencioso para ser objeto de prática de sabedoria nas relações humanas.


O Evangelho é marcado por sinceridade e sem hipocrisia, com discrição, sem histeria, sem manifestações gritantes, mas também não é silencioso, ele tem um tom pacificado de relação humana.


Tem alegria, mas não é feito de algazarra; oferece um culto racional ao mesmo tempo em que não busca emoções, mas também não foge delas.
Não fica procurando por emoções e nem por sensações, mas não tem medo de manifestá-las. Jesus chorou, riu, gargalhou.


O evangelho não é um sistema de crenças que ensina que se você juntar uma emoção com outra, ou com isso e aquilo, o resultado será fogo. No Evangelho não existe sistema de nada, é só um compartilhar de vida e alegria.


No Evangelho se crê que Deus é livre e soberano para manifestar o que Ele quiser e quando Ele desejar. De modo que se alguém fala em línguas ou tem visões, isso virá naturalmente e não será fruto de um buscar emotivo.


O Evangelho não é um sistema de crenças mágicas, mas é um caminho de consciência de verdade e de vida, é espiritualidade e não se alimenta de emoções.
Evangelho é amor com suas manifestações de verdade e de justiça, de bondade, longanimidade, mansidão, domínio próprio, fidelidade, discrição, alegria na simplicidade, espontaneidade na doação, alegria de ter na generosidade um galardão.


Essa fé segundo Jesus se manifesta nestas práticas e obras, é a conexão com o impossível.  Em Lucas 1:17 jesus estava falando da salvação quando mencionou que tudo é possível para Deus. A graça, a salvação, a fé genuína em Jesus me conecta a toda sorte de bênçãos nas regiões celestiais em Cristo – me conecta ao impossível, me faz andar dentro dessa coisa estranha que só compreendemos depois, mas que é o desafio de Jesus para nós: experimentar a conexão com o impossível.


Até mesmo para experimentar a certeza da salvação eu preciso ter uma conexão com o impossível. Pois, como é que um ser como eu pode vir a experimentar toda a glória de Deus e me tornar coerdeiro dele em Cristo? Para acreditar nisso, é necessário ter essa loucura de se tornar capaz de crer pela fé. Uma fé que é a certeza de coisas que não se veem e convicção de coisas que se esperam pela fé. 

     Uma fé que não é emoção e nem sentimento, que se baseia em sensações e emotividades, mas é fé na fidelidade de Deus. As coisas são maiores do que eu, mas eu ando guiado por uma fé-certeza (Hebreus 11:1).

     Toda narrativa da escritura é sobre a fé que nos coloca conectado com o que está para além do imediato, e isso não acontece por meio de emoção ou sentimento, acontece por meio de certezas das coisas que se esperam, de convicção. Nada tem a ver com emoção, com sentimentos ou falta deles. É crer na palavra de Deus, e a palavra de Deus é Jesus. Jesus é a única palavra pura e absoluta de Deus para todos os homens e todas as consciências.


Características da fé segundo Jesus Cristo:


1) A fé segundo Jesus é uma fé feita de não-dúvida. A fé é um dom de Deus, é graça. Todos podemos ter fé, mas há aqueles com níveis diferentes de fé. Há quem desfrute de uma fé que cresceu para além da dúvida. Jesus nos exortou para crermos e não duvidarmos. Ele questionou seus discípulos: ‘homens de pequena fé, por que duvidastes?’ Em Jesus, não há estímulo para a dúvida. Existe, sim, paciência com o nível de maturidade de cada um. A dúvida é para ser vencida. A fé é certeza. Somos gente do impossível. Nós que cremos devemos não duvidar, precisamos olhar para a vida sem dúvidas, mesmo que não a entendamos. Preciso ser uma pessoa em quem a dúvida foi vencida. É uma fé que só acontece para além dos sentimentos e das emoções. Se eu me emocionalizar, então as dúvidas surgirão. O coração é traiçoeiro, a emoção é volúvel, é como as ondas do mar que vão e vem e, nesse balanço das emoções, as dúvidas são criadas. Mas podemos crescer para viver para além da dúvida. Isso acontece quando não achamos que temos o mérito de entender todas as coisas da existência. Faz parte da minha fé não entender a existência e crer no amor de Deus para comigo mesmo quando não sei e não entendo nada. E, verdade seja dita, nós não sabemos e não entendemos nada o tempo todo. Viver com confiança não é viver de maneira burra. Eu continuo analisando, sou crítico, sou racional, sou ponderado. Mas não tenho medo e nem dúvida e faço minhas ponderações sempre tendo convicção de que conto com a ajuda sobrenatural de Deus sobre mim. Eu vou me habituando ao impossível, vou me habituando a viver sem dúvida e com convicção e certeza... com emoção ou sem emoção, tanto faz, porque EU SEI.
 
2) A fé segundo Jesus é confiança no amor de Deus. Eu não preciso ter preocupação com nada pois, se Deus é Deus do jeito que eu creio em Jesus, então vivo em paz nessa confiança pacificada do amor de Deus por mim. Se Deus é Deus para mim, se Deus é Deus de fato, então o que me resta senão confiar absolutamente nele? Nesta perspectiva, eu me torno como uma criança que tem de confiar em alguém que cuide dela. Conforme cresço e vou amadurecendo nessa confiança, eu vou descansando nele. Não importam os abismos, quanto mais profundos eles forem, mais profunda será a minha convicção, pois Deus é por mim, e se Deus é por mim, e eu creio nisso, então descanso. Eu aprendo a viver crendo assim, e só a confiança nele me leva atravessar todos os vales sombrios.
 
3) A fé segundo Jesus é descanso e paz. Você se entrega e é pacificado serenamente. A cada dia isso vai crescendo dentro de você e você se sente solucionado antes mesmo de existir uma solução, pois estará em paz e descansando nele. Posso não ver como será o meu futuro, mas descanso porque sei que, na verdade, o futuro já é, pois já está consumado, Ele já fez tudo que era necessário ser feito por mim. Posso descansar pacificado nele.
 
4) A fé segundo Jesus é algo que se torna à medida que se treina. A gente evolui, a gente treina na fé. A vida é um treino que nós vamos treinando na gente mesmo. Começamos a crer como uma criança, mas conforme as dores da vida vão acontecendo, a gente vai crescendo em fé, vamos aprendendo a não colocar a confiança em tolices. A vida é o próprio treino. Vai-se ganhando solidez diante das dores. Vamos virando filhos tranquilos do milagre porque aprendemos a andar nesse estado de descanso e paz.
 
5) A fé segundo Jesus é algo que a gente vê aumentar em nós. É por isso que Jesus fala do homem de pouca fé. A fé é diminuída pelas dúvidas e cresce na entrega ao amor e na fidelidade de Deus. A fé pode aumentar, por isso Jesus fala que a fé pode ser pequena como um grão de mostarda. Se tem algo pequeno, também tem algo que cresce e se desenvolve, que amadurece, que se enraíza e se expande.
 
6) A fé segundo Jesus se consuma como uma dimensão que excede a todo entendimento. Quando cremos assim, a fé se torna muito mais do que um escudo, pois se Deus é por mim, o que ou quem será contra mim? Eu estou guardado nele. Por isso que essa fé se consuma nessa dimensão que excede o entendimento. Nessa altura, posso me sentir como aquele que não precisa sentir nada, e quando sente é gostoso, mas quando não sente, está tudo bem, está ótimo, pois acima disso, EU SEI! Não preciso sentir, só sei. Isso é paz, é descanso! Eu não tenho que mentalizar ou forçar essa fé. Ao contrário da mentalização que é um esforço, essa fé é entrega e descanso, é confiança. É a não
mentalização, é o silêncio confiante e pacificado.



[1] Aula ministrada por Caio Fabio d’Araujo Filho em curso online sobre “Como vencer o Medo”. Link não disponível atualmente.


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