sexta-feira, 27 de fevereiro de 2009

MULHER INTERROMPIDA


Tudo aconteceu muito rápido. Ela andava pela praia, como era sua rotina matinal. Já havia cruzado com o casal de velhinhos, com a moça sarada e seu cão fiel e com o garotão que empinava pipa nos primeiros ventos da manhã. Então ela viu, lá longe, aquela silhueta de homem bombado. Ele pescava, tranquilamente, na beira do mar, com água pela altura dos joelhos. Até então, nada de espetacular. Ela andava em passos rápidos repassando mentalmente a agenda do dia. Seria um longo dia. Reuniões, encontros, telefonemas, e-mails, decisões e outras atividades mil que levariam seu dia embora. 

Nem sempre ela acordava feliz em ter de trabalhar e garantir seu sustento. Às vezes, invejava a vida de sua avó: acordar cedo para fazer o café, preparar os filhos para escola, depois o almoço para aguardar os filhos que voltavam da escola, limpar a cozinha, fazer o lanchinho das crianças, vê-las brincar no pátio, ajudá-las no dever de casa, sentar na cadeira de balanço e tricotar até cansar, ler os livros da estante do marido, preparar o jantar da família, ver todos felizes ao redor da mesa saboreando sua comida e agradecendo-lhe pela roupa passada na gaveta, pela sobremesa deliciosa.

Mas, isso parecia-lhe mais um conto de fadas do que uma vida de verdade. Que mulher moderna ainda podia viver tranquilamente desta forma? Ela conhecia outra rotina, outros deveres, vivia para solucionar problemas que não eram seus. Era obrigada a manter o bom humor sempre – mesmo quando TPM lutava contra ela – precisava manter os clientes satisfeitos, unhas sempre impecáveis, cinturinha de pilão, nenhum quilo a mais, sempre depiladinha, elegante, diplomas em constante renovação. Era uma escrava da modernidade.

Mesmo as caminhadas matinais ao longo da praia eram mais uma obrigação do que um prazer. Era o único momento do dia que sentia sua mente livre, seus pensamentos podiam vagar lentamente e sem destino. Permitia-se ansiar por um companheiro de vida que lhe oferecesse cuidados mínimos, como seu pai fizera quando ainda era uma garotinha. Mas sabia que era tolice, romantismo arcaico.

Entretanto, naquele dia, suas fantasias foram aprisionadas pela visão daquele pescador lá adiante. Era uma figura imponente. Aproximando-se, ela percebeu sua beleza. Seu primeiro pensamento foi romântico: “Meu Deus, podia ser um destes!”. Com seus passos rápidos passou por ele, que atraído, olhou em sua direção e sorriu. Foi um sorriso claro, amistoso, sincero, colorido. Virando o pescoço para acompanhar a figura que já ficava para atrás, ela respondeu ao sorriso. Não percebeu o buraco que havia na areia e, ao cair, sua cabeça bateu na pedra esquecida ao lado do buraco. A dor foi lancinante, sentiu um fio quente escorrendo em seu rosto e pescoço e sua última visão foi daquele corpo escultural com um sorriso claro e límpido como o sol que se fortalecia no céu. Seria mais um dia quente de verão. Mas ela jamais saberia disso.


Por Lia Silva em 27/02/2009

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